domingo, 30 de março de 2014

O GOLPE MILITAR DE 31 DE MARÇO DE 1964

UMA REFLEXÃO:

O INÍCIO DO PERÍODO MAIS SOMBRIO DA HISTÓRIA DO BRASIL – OS ANOS DE CHUMBO:

Foi em um dia trinta e um de março do ano de hum mil novecentos e sessenta e quatro que começou a ser escrita parte mais negra da história de nosso país.

Com pouco mais de cinco meses de vida, poderia dizer que nasci, passei minha infância, minha adolescência e iniciei minha fase adulta dentro do “regime de exceção”.

O Golpe Militar de 1964, que está a completar o seu cinquentenário, designa historicamente, o conjunto de eventos ocorridos em 31 de março de 1964 no Brasil, que culminaram, no dia 1 de abril de 1964, com um golpe de estado que encerrou o governo do presidente João Goulart, também conhecido como Jango.

Os militares brasileiros a favor do Golpe costumavam designá-lo como Revolução de 1964 ou Contrarrevolução de 1964, era a expressão associada pelos defensores da ditadura.

O golpe de Estado estabeleceu um regime alinhado politicamente aos Estados Unidos e acarretou profundas modificações na organização política do país, bem como na vida econômica e social. Todos os cinco presidentes militares que se sucederam desde então se declararam herdeiros e continuadores da Revolução de 1964. O regime militar durou até 1985, quando Tancredo Neves foi eleito, indiretamente, o primeiro presidente civil desde 1964.

Logo após o golpe de 1964, em seus primeiros quatro anos, a ditadura foi endurecendo e fechando o regime aos poucos. Vieram os atos institucionais, “artificialismos criados para dar legitimidade jurídica a ações políticas contrárias à Constituição Brasileira de 1946”, culminando numa ditadura. O período compreendido entre 1968 e 1975 foi determinante para a nomenclatura histórica conhecida como "anos de chumbo".

Dezoito milhões de eleitores brasileiros sofreram das restrições impostas por seguidos atos institucionais que ignoravam e cancelavam a validade da Constituição Brasileira, criando um estado de exceção, suspendendo a democracia.

Tencionando impor um modelo social, político e econômico para o Brasil, a ditadura militar, no entanto tentou forjar um ambiente democrático, e não se destacou por um governante definido ou personalista. Durante sua vigência, a ditadura militar não era oficialmente conhecida por este nome, mas pelo nome de "Revolução" e seus governos eram considerados "revolucionários". A visão crítica do regime só começou a ser permitida a partir de 1974, quando o general Ernesto Geisel determinou a abertura lenta e gradual da vida sócio-política do país.

O golpe também foi recebido com alívio pelo governo norte-americano, satisfeito de ver que o Brasil não seguia o mesmo caminho de Cuba, onde a guerrilha liderada por Fidel Castro havia conseguido tomar o poder. Os Estados Unidos acompanharam de perto a conspiração e o desenrolar dos acontecimentos, principalmente através de seu embaixador no Brasil, Lincoln Gordon, e do adido militar, Vernon Walters, e haviam decidido, através da secreta "Operação Brother Sam", dar apoio logístico aos militares golpistas, caso estes enfrentassem uma longa resistência por parte de forças leais a Jango.

Em 9 de abril de 1964 foi publicado o Ato Institucional Número Um, ou AI-1, que “suspendeu por dez anos os direitos políticos de todos aqueles que poderiam ser contrários ao regime”, intimidando os congressistas com a ameaça de cassações, prisão, enquadramento como subversivos e expulsão do país. A Lei de Segurança Nacional, que seria publicada em 3 de março de 1967, teve seu embrião no AI-1.

O primeiro parágrafo do AI-1 revelava a nítida preocupação de legitimar imediatamente o novo regime, dizia o indigitado dispositivo:

"…É indispensável fixar o conceito do movimento civil e militar que acaba de abrir ao Brasil uma nova perspectiva sobre o seu futuro. O que houve e continuará a haver neste momento, não só no espírito e no comportamento das classes armadas, como na opinião pública nacional, é uma autêntica revolução… A revolução se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação… A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma."

Seguiram-se outros Atos Institucionais! Fui crescendo, no início da vida escolar, lembro-me das disciplinas de educação moral e cívica, onde eram ministradas aulas para que pudéssemos conhecer os símbolos e brasões nacionais, os ministros de Estado, os Presidentes da República. Eram realizadas cerimônias de culto ao pavilhão nacional; havia os desfiles de sete de setembro, tanto nas escolas, quanto para a demonstração do material bélico das Forças Armadas e etc.

Enquanto isto, a “revolução”, ceifava o direito de liberdade de expressão; os comunistas eram perseguidos, trabalhadores, operários, lideranças estudantis, políticos contrários ao regime perdiam os seus mandatos, eram presos e igualmente os seus familiares, que eram levados aos porões do DOPS e DOICODI, passavam por sessões de tortura, eram aniquilados física e psicologicamente.

Os veículos de comunicação passaram a ser vitimados pelo cerceamento ao direito de livre manifestação, os jornais publicavam receitas de bolo, a arte e a cultura dependia de prévia censura. Nos programas de televisão, antes da exibição, era apresentada a autorização do Departamento de Censura Federal e etc. Qualquer forma de expressão dependia de prévia autorização!

Muitos deixavam o país, outros, simplesmente desapareciam, sob os auspícios de falsos acidentes, de fugas para países vizinhos e etc.

Recordo-me das propagandas políticas da época, onde existiam dois partidos políticos, a ARENA e o MDB, e as regras eleitorais eram regidas pela chamada “Lei Falcão”.

Campanhas publicitárias passaram a ser veiculadas na década de hum mil novecentos e setenta, intituladas: “Brasil: Ame-o ou deixe-o!" (que era usada por adultos e crianças, ostentada em objetos e nas janelas dos automóveis); "Brasil: AME-O" (muitas empresas de transportes de valores utilizavam-na ostentada em seus veículos); "Quem não vive para servir ao Brasil, não serve para viver no Brasil".

E as prisões continuavam, os movimentos da sociedade civil organizada eram dissipados, com a força repressora do Exército brasileiro, com prisões, mortes e etc.

Os contrários à revolução eram considerados comunistas e graças aos mecanismos legislativos, sujeitavam-se às penas da lei. As mortes não eram esclarecidas, histórias fantasiosas eram criadas para “mascarar” os casos de tortura e consequentemente as mortes, muitas das quais, até hoje, não foram solucionadas e que começavam a ser esclarecidas com os trabalhos das “Comissões da Verdade”.

Tornei-me adulto! Fui designado para cumprir o serviço militar obrigatório, “servindo a pátria” na Companhia de Comando do Segundo Exército, unidade militar de apoio ao Comando do Segundo Exército (hoje Comando Militar do Sudeste), ainda estávamos no regime de exceção, cheguei a ver vários agentes do Serviço Secreto, designados na linguagem militar como “S2”, os quais, pela aparência poderiam ser considerados “pessoas do povo”, quem os encontrasse pelas ruas, jamais imaginaria que se tratava de militares infiltrados dentro das escolas, das universidades, das empresas, das manifestações e etc.

Conheci os chamados “porões do DOI CODI” em SP, que ficavam instalados em Distrito Policial no bairro do Paraíso, local cuja entrada se dava de forma subterrânea através de um Box aparentemente utilizado para troca de óleo de veículos (como aqueles que existem em postos de combustível). Quando estive no local, ainda recruta, confesso que embora o local estivesse vazio, mostrava-se sombrio, assustador.

Naquela época já se encontrava em vigor a “Lei de Anistia” que permitiu a todos aqueles que foram compelidos a deixar o país, pudessem retornar, desmitificando-se assim, as imputações que lhes foram atribuídas durante os “anos de chumbo”.

Ingressei na Faculdade de Direito, depois de cumprir o meu dever para com a pátria, era a fase final dos “anos de chumbo”! Sei que havia ainda, vários agentes infiltrados, como acontecera na época em que meu pai cursou a Faculdade de Direito!

Aprendi Direito Constitucional com lastro no regramento de 1964, e, ali, tomei conhecimento de casos como o do operário Manoel Fiel Filho e da sentença que condenou a União Federal pela morte do jornalista Vladmir Herzog, pois o meu então professor, o ex-presidente do Tribunal Regional Federal da Terceira Região – SP, Desembargador Federal Marcio José de Morais, à época Juiz Federal de primeiro grau, mesmo sob pressões intermináveis e ameaças contra si e sua família, teve a coragem de se insurgir contra o regime, afastando a tese de suicídio nas dependências dos porões do DOI CODI, e responsabilizar o governo pela morte do jornalista “Vlado”.

Durante o meu curso de Direito, foi iniciado o procedimento de transição do regime, ocorreram as eleições indiretas, Tancredo Neves foi eleito em 1985 o primeiro presidente civil depois da “revolução”, derrotando no Congresso Nacional o candidato da situação Paulo Maluf.

Todavia, o então presidente eleito, porém não empossado, “acometido por grave enfermidade”, faleceu, recebendo a faixa presidencial, o então vice-presidente, “eleito e não empossado”, José Ribamar de Araújo Costa, conhecido como José Sarney.

De estranho ficou o fato de que “segundo a Constituição vigente à época, se por ventura não pudesse ser empossado, o presidente eleito, deveria o Congresso Nacional, marcar novas eleições indiretas em um prazo de quarenta e cinco dias”. José Sarney tornou-se presidente do Brasil.

No final de meu Curso de Direito, veio a promulgação da “Constituição Cidadã”, restabelecendo-se definitivamente o Estado Democrático de Direito!

O tempo passou, os “anos de chumbo” acabaram! A Carta Constitucional completou seu “jubileu de prata” concomitantemente as comemorações dos meus vinte e cinco anos de advocacia, tive a honra e o privilégio de participar de inúmeras cerimônias de homenagem aos Advogados e Legisladores da Assembleia Nacional!

Hoje o “Golpe Militar” completa o cinquentenário, enquanto eu tenho cinquenta anos de vida!

Vieram as “comissões da verdade”, criadas para apurar as atrocidades cometidas durante esse nefasto período da nossa história!

A Seção de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil instituiu a “Comissão da Verdade” destinada a contribuir para esclarecer, colher dados e informações dos Advogados e Advogadas que atuaram durante o regime de exceção, uma importante iniciativa do presidente Marcos da Costa (que também nasceu, cresceu e viveu esse período sombrio da história do país), para que assim, a advocacia possa deixar para os anais da história, o quanto foi importante o papel da instituição e dos nossos profissionais na defesa dos direitos que eram reiteradamente ceifados.

Acompanhei a retomada do prédio da Auditoria Militar em SP (local em que entreguei muitos expedientes quando do serviço militar obrigatório), e, onde será instalado o “Memorial da Luta pela Justiça” (no ano passado), onde tive a oportunidade de conhecer muitos que foram vitimas do regime militar, e, até mesmo familiares que perderam seus entes queridos durante essa triste época!

E na ultima sexta-feira (28.03.), às vésperas dos cinquenta anos do “golpe”, participei, na sede do futuro Memorial da Luta pela Justiça, do lançamento do livro “CORAGEM: A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo”, organizado pelo deputado José Mentor, com o apoio institucional da Seção de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil e do Conselho Federal da OAB.

Na ocasião foram homenageados advogados criminalistas que atuaram durante o período do regime militar e até mesmo alguns cidadãos que foram considerados réus, criminosos, subversivos ou comunistas, que muito lutaram para provar suas inocências.

Mais que uma homenagem a todos que sobreviveram àqueles tempos sombrios, foi um momento em que vieram a publico, depoimentos emocionados daqueles que viveram a história e que fazem parte integrante dela, que puderam revelar o quanto era difícil fazer valer o Direito e a Justiça!

Enfim, resolvi escrever essas breves ponderações, não para celebrar os cinquenta anos do “Golpe Militar”, mas para deixar registrado que "se vivemos hoje um regime democrático, que ainda contém uma série de defeitos, os quais, certamente, serão objeto de correção com o passar do tempo, para que chegássemos até aqui, muitos lutaram incansavelmente, perdendo inclusive as suas vidas"!

Razão pela qual, penso que jamais deveremos esquecer esse período sombrio da história do nosso país, onde os direitos mais comezinhos que hoje podemos exercitar, dentre os quais, o da “Liberdade de Expressão”, foram ceifados ao longo dos “anos de chumbo”!

Ficam os meus registros para aqueles que viveram essa triste época, e, para aqueles que pouco conhecem da história!

Gilberto Marques Bruno
Advogado
Sócio Fundador de Marques Bruno Advogados Associados
Especialista em Direito Empresarial, Direito Tributário, Direito Público e Direito sobre Internet e outras Tecnologias
Conselheiro do Conselho Direitos e Prerrogativas da Seccional Paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (Triênio: 2013/2015)