UMA REFLEXÃO:
O INÍCIO DO PERÍODO MAIS SOMBRIO DA HISTÓRIA DO BRASIL – OS ANOS DE
CHUMBO:
Foi em um dia trinta e um de
março do ano de hum mil novecentos e sessenta e quatro que começou a ser
escrita parte mais negra da história de nosso país.
Com pouco mais de cinco meses de
vida, poderia dizer que nasci, passei minha infância, minha adolescência e
iniciei minha fase adulta dentro do “regime de exceção”.
O Golpe Militar de 1964, que está
a completar o seu cinquentenário, designa historicamente, o conjunto de eventos
ocorridos em 31 de março de 1964 no Brasil, que culminaram, no dia 1 de abril
de 1964, com um golpe de estado que encerrou o governo do presidente João
Goulart, também conhecido como Jango.
Os militares brasileiros a favor
do Golpe costumavam designá-lo como Revolução de 1964 ou Contrarrevolução de
1964, era a expressão associada pelos defensores da ditadura.
O golpe de Estado estabeleceu um
regime alinhado politicamente aos Estados Unidos e acarretou profundas
modificações na organização política do país, bem como na vida econômica e
social. Todos os cinco presidentes militares que se sucederam desde então se
declararam herdeiros e continuadores da Revolução de 1964. O regime militar
durou até 1985, quando Tancredo Neves foi eleito, indiretamente, o primeiro
presidente civil desde 1964.
Logo após o golpe de 1964, em
seus primeiros quatro anos, a ditadura foi endurecendo e fechando o regime aos
poucos. Vieram os atos institucionais, “artificialismos
criados para dar legitimidade jurídica a ações políticas contrárias à
Constituição Brasileira de 1946”, culminando numa ditadura. O período
compreendido entre 1968 e 1975 foi determinante para a nomenclatura histórica
conhecida como "anos de chumbo".
Dezoito milhões de eleitores brasileiros
sofreram das restrições impostas por seguidos atos institucionais que ignoravam
e cancelavam a validade da Constituição Brasileira, criando um estado de
exceção, suspendendo a democracia.
Tencionando impor um modelo social,
político e econômico para o Brasil, a ditadura militar, no entanto tentou
forjar um ambiente democrático, e não se destacou por um governante definido ou
personalista. Durante sua vigência, a ditadura militar não era oficialmente
conhecida por este nome, mas pelo nome de "Revolução" e seus governos eram considerados "revolucionários". A visão
crítica do regime só começou a ser permitida a partir de 1974, quando o general
Ernesto Geisel determinou a abertura lenta e gradual da vida sócio-política do
país.
O golpe também foi recebido com
alívio pelo governo norte-americano, satisfeito de ver que o Brasil não seguia
o mesmo caminho de Cuba, onde a guerrilha liderada por Fidel Castro havia
conseguido tomar o poder. Os Estados Unidos acompanharam de perto a conspiração
e o desenrolar dos acontecimentos, principalmente através de seu embaixador no
Brasil, Lincoln Gordon, e do adido militar, Vernon Walters, e haviam decidido,
através da secreta "Operação Brother Sam", dar apoio logístico aos
militares golpistas, caso estes enfrentassem uma longa resistência por parte de
forças leais a Jango.
Em 9 de abril de 1964 foi
publicado o Ato Institucional Número Um, ou AI-1, que “suspendeu por dez anos os direitos políticos de todos aqueles que
poderiam ser contrários ao regime”, intimidando os congressistas com a
ameaça de cassações, prisão, enquadramento como subversivos e expulsão do país.
A Lei de Segurança Nacional, que seria publicada em 3 de março de 1967, teve
seu embrião no AI-1.
O primeiro parágrafo do AI-1
revelava a nítida preocupação de legitimar imediatamente o novo regime, dizia o
indigitado dispositivo:
"…É indispensável fixar o conceito do movimento civil e militar que
acaba de abrir ao Brasil uma nova perspectiva sobre o seu futuro. O que houve e
continuará a haver neste momento, não só no espírito e no comportamento das
classes armadas, como na opinião pública nacional, é uma autêntica revolução… A
revolução se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se
traduz não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da
Nação… A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte.
Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais
expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa,
como Poder Constituinte, se legitima por si mesma."
Seguiram-se outros Atos
Institucionais! Fui crescendo, no início da vida escolar, lembro-me das
disciplinas de educação moral e cívica, onde eram ministradas aulas para que
pudéssemos conhecer os símbolos e brasões nacionais, os ministros de Estado, os
Presidentes da República. Eram realizadas cerimônias de culto ao pavilhão
nacional; havia os desfiles de sete de setembro, tanto nas escolas, quanto para
a demonstração do material bélico das Forças Armadas e etc.
Enquanto isto, a “revolução”, ceifava o direito de liberdade de
expressão; os comunistas eram perseguidos, trabalhadores, operários, lideranças
estudantis, políticos contrários ao regime perdiam os seus mandatos, eram
presos e igualmente os seus familiares, que eram levados aos porões do DOPS e
DOICODI, passavam por sessões de tortura, eram aniquilados física e
psicologicamente.
Os veículos de comunicação
passaram a ser vitimados pelo cerceamento ao direito de livre manifestação, os
jornais publicavam receitas de bolo, a arte e a cultura dependia de prévia
censura. Nos programas de televisão, antes da exibição, era apresentada a
autorização do Departamento de Censura Federal e etc. Qualquer forma de
expressão dependia de prévia autorização!
Muitos deixavam o país, outros,
simplesmente desapareciam, sob os auspícios de falsos acidentes, de fugas para
países vizinhos e etc.
Recordo-me das propagandas
políticas da época, onde existiam dois partidos políticos, a ARENA e o MDB, e
as regras eleitorais eram regidas pela chamada “Lei Falcão”.
Campanhas publicitárias passaram
a ser veiculadas na década de hum mil novecentos e setenta, intituladas: “Brasil: Ame-o ou deixe-o!"
(que era usada por adultos e crianças, ostentada em objetos e nas janelas dos
automóveis); "Brasil: AME-O"
(muitas empresas de transportes de valores utilizavam-na ostentada em seus
veículos); "Quem não vive para
servir ao Brasil, não serve para viver no Brasil".
E as prisões continuavam, os
movimentos da sociedade civil organizada eram dissipados, com a força
repressora do Exército brasileiro, com prisões, mortes e etc.
Os contrários à revolução eram
considerados comunistas e graças aos mecanismos legislativos, sujeitavam-se às
penas da lei. As mortes não eram esclarecidas, histórias fantasiosas eram
criadas para “mascarar” os casos de tortura e consequentemente as mortes,
muitas das quais, até hoje, não foram solucionadas e que começavam a ser
esclarecidas com os trabalhos das “Comissões da Verdade”.
Tornei-me adulto! Fui designado
para cumprir o serviço militar obrigatório, “servindo a pátria” na Companhia de Comando do Segundo
Exército, unidade militar de apoio ao Comando do Segundo Exército (hoje Comando
Militar do Sudeste), ainda estávamos no regime de exceção, cheguei a ver vários
agentes do Serviço Secreto, designados na linguagem militar como “S2”, os quais, pela aparência
poderiam ser considerados “pessoas do
povo”, quem os encontrasse pelas ruas, jamais imaginaria que se tratava
de militares infiltrados dentro das escolas, das universidades, das empresas,
das manifestações e etc.
Conheci os chamados “porões do DOI CODI” em SP, que
ficavam instalados em Distrito Policial no bairro do Paraíso, local cuja
entrada se dava de forma subterrânea através de um Box aparentemente utilizado
para troca de óleo de veículos (como aqueles que existem em postos de
combustível). Quando estive no local, ainda recruta, confesso que embora o
local estivesse vazio, mostrava-se sombrio, assustador.
Naquela época já se encontrava em
vigor a “Lei de Anistia” que
permitiu a todos aqueles que foram compelidos a deixar o país, pudessem
retornar, desmitificando-se assim, as imputações que lhes foram atribuídas
durante os “anos de chumbo”.
Ingressei na Faculdade de
Direito, depois de cumprir o meu dever para com a pátria, era a fase final dos
“anos de chumbo”! Sei que
havia ainda, vários agentes infiltrados, como acontecera na época em que meu
pai cursou a Faculdade de Direito!
Aprendi Direito Constitucional
com lastro no regramento de 1964, e, ali, tomei conhecimento de casos como o do
operário Manoel Fiel Filho e da sentença que condenou a União Federal pela
morte do jornalista Vladmir Herzog, pois o meu então professor, o ex-presidente
do Tribunal Regional Federal da Terceira Região – SP, Desembargador Federal Marcio
José de Morais, à época Juiz Federal de primeiro grau, mesmo sob pressões
intermináveis e ameaças contra si e sua família, teve a coragem de se insurgir
contra o regime, afastando a tese de suicídio nas dependências dos porões do
DOI CODI, e responsabilizar o governo pela morte do jornalista “Vlado”.
Durante o meu curso de Direito,
foi iniciado o procedimento de transição do regime, ocorreram as eleições
indiretas, Tancredo Neves foi eleito
em 1985 o primeiro presidente civil depois da “revolução”, derrotando no
Congresso Nacional o candidato da situação Paulo Maluf.
Todavia, o então presidente
eleito, porém não empossado, “acometido
por grave enfermidade”, faleceu, recebendo a faixa presidencial, o
então vice-presidente, “eleito e não
empossado”, José Ribamar de Araújo Costa, conhecido como José Sarney.
De estranho ficou o fato de que “segundo a Constituição vigente à época,
se por ventura não pudesse ser empossado, o presidente eleito, deveria o
Congresso Nacional, marcar novas eleições indiretas em um prazo de quarenta e
cinco dias”. José Sarney tornou-se presidente do Brasil.
No final de meu Curso de Direito,
veio a promulgação da “Constituição
Cidadã”, restabelecendo-se definitivamente o Estado Democrático de
Direito!
O tempo passou, os “anos de chumbo” acabaram! A
Carta Constitucional completou seu “jubileu
de prata” concomitantemente as comemorações dos meus vinte e cinco anos
de advocacia, tive a honra e o privilégio de participar de inúmeras
cerimônias de homenagem aos Advogados e Legisladores da Assembleia Nacional!
Hoje o “Golpe Militar” completa o cinquentenário, enquanto eu tenho
cinquenta anos de vida!
Vieram as “comissões da verdade”, criadas para apurar as atrocidades
cometidas durante esse nefasto período da nossa história!
A Seção de São Paulo da Ordem dos
Advogados do Brasil instituiu a “Comissão
da Verdade” destinada a contribuir para esclarecer, colher dados e
informações dos Advogados e Advogadas que atuaram durante o regime de exceção,
uma importante iniciativa do presidente Marcos da Costa (que também nasceu,
cresceu e viveu esse período sombrio da história do país), para que assim, a
advocacia possa deixar para os anais da história, o quanto foi importante o
papel da instituição e dos nossos profissionais na defesa dos direitos que eram
reiteradamente ceifados.
Acompanhei a retomada do prédio
da Auditoria Militar em SP (local em que entreguei muitos expedientes quando do serviço militar obrigatório), e, onde será instalado o “Memorial da Luta pela Justiça” (no ano passado), onde tive a
oportunidade de conhecer muitos que foram vitimas do regime militar, e, até mesmo
familiares que perderam seus entes queridos durante essa triste época!
E na ultima sexta-feira (28.03.),
às vésperas dos cinquenta anos do “golpe”,
participei, na sede do futuro Memorial da Luta pela Justiça, do lançamento do
livro “CORAGEM: A Advocacia Criminal
nos Anos de Chumbo”, organizado pelo deputado José Mentor, com o apoio
institucional da Seção de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil e do
Conselho Federal da OAB.
Na ocasião foram homenageados
advogados criminalistas que atuaram durante o período do regime militar e até
mesmo alguns cidadãos que foram considerados réus, criminosos, subversivos ou
comunistas, que muito lutaram para provar suas inocências.
Mais que uma homenagem a todos
que sobreviveram àqueles tempos sombrios, foi um momento em que vieram a
publico, depoimentos emocionados daqueles que viveram a história e que fazem
parte integrante dela, que puderam revelar o quanto era difícil fazer valer o
Direito e a Justiça!
Enfim, resolvi escrever essas
breves ponderações, não para celebrar os cinquenta anos do “Golpe Militar”, mas para deixar
registrado que "se vivemos hoje um regime democrático, que ainda contém uma
série de defeitos, os quais, certamente, serão objeto de correção com o passar
do tempo, para que chegássemos até aqui, muitos lutaram incansavelmente,
perdendo inclusive as suas vidas"!
Razão pela qual, penso que jamais
deveremos esquecer esse período sombrio da história do nosso país, onde os
direitos mais comezinhos que hoje podemos exercitar, dentre os quais, o da
“Liberdade de Expressão”, foram ceifados ao longo dos “anos de chumbo”!
Ficam os meus registros para aqueles que viveram essa triste época, e, para aqueles que pouco conhecem da história!
Gilberto Marques Bruno
Advogado
Sócio
Fundador de Marques Bruno Advogados Associados
Especialista
em Direito Empresarial, Direito Tributário, Direito Público e Direito sobre
Internet e outras Tecnologias
Conselheiro
do Conselho Direitos e Prerrogativas da Seccional Paulista da Ordem dos
Advogados do Brasil (Triênio: 2013/2015)
Nenhum comentário:
Postar um comentário